CHICA CHICA BOOM CHIC

Por Débora Nascimento

 

Para além da mistura de culturas, símbolos, estilos musicais e demais influências que construíram sua riqueza sonora, a música brasileira traz, em seu cerne, uma característica peculiar e essencial, o bom humor. Este pode ser observado não apenas nas letras, mas nas melodias, nas construções harmônicas, no predomínio de determinadas sequências de acordes maiores, nos ritmos contagiantes, cuja sonoridade resultante transmite ao ouvinte uma vibração positiva.

Desde Pelo telefone (1916), o primeiro samba registrado, a irreverência do compositor brasileiro se faz presente na história da nossa música popular. Já no início, a letra diz que o chefe de polícia ligou para avisar que há um cassino clandestino para se jogar. E o Carnaval, em especial, virou a época do ano em que passaram a ser lançadas as músicas que trazem temas humorísticos através de sátiras, paródias e expressões de duplo sentido.

“Tal tendência” de satirizar acontecimentos através de crônicas musicais, escreve o jornalista e pesquisador Franklin Martins, no livro Quem foi que inventou o Brasil?, “se consolidaria definitivamente com o advento da cançoneta, filha direta da chansonette francesa, que por aqui aportou em meados do século XIX, ao serem abertos os primeiros cafés-cantantes e, logo depois, seus primos pobres, os chopes berrantes. Canção curta que explorava, em clima de chacota, os fatos da atualidade, geralmente com letra maliciosa e de duplo sentido, a cançoneta logo caiu no gosto do público — melhor seria dizer: encaixou-se com a natural inclinação jocosa que já existia no público”.

No livro História social da música popular brasileira, o pesquisador José Ramos Tinhorão resgata: “Transformada por força do gosto do público carioca quase que exclusivamente como canção humorística, a cançoneta — que não chegaria a constituir gênero musical determinado, mas teria o nome usado para qualquer cantiga engraçada ou maliciosa pelo duplo sentido — permaneceu por mais de meio século como especialidade de artistas-cantores, não apenas daqueles cafés-cantantes e cafés-concerto (e logo das revistas do ano), mas dos novos locais de diversão que se abriram para atender às camadas mais baixas da população”.

Em termos de humor, um formato fez muito sucesso no início do século passado: o teatro de revista. A diversão trazida de Portugal consistia em apresentações que revisitavam — daí o nome — os fatos mais importantes do ano que se passou. Essa característica de registrar, em canções, os acontecimentos de forma engraçada manteve-se com o surgimento da indústria fonográfica no país.

“Carmen Miranda era mestra do samba urbano carioca: leve, safado, sexy, como o estou-poucome-lixando da Cidade Maravilhosa” Paulo Francis

Esse humor se fez presente nas obras de diversos ícones da música brasileira, como Noel Rosa, Jackson do Pandeiro, Adoniran Barbosa, Rita Lee, Raul Seixas… Mas certamente a artista que mais personificou esse estado de espírito festivo foi Carmen Miranda. A cantora, atriz e dançarina luso-brasileira levou, inclusive, ao exterior esse traço humorístico como uma representação imagética do Brasil. 

Nascida Maria do Carmo Miranda da Cunha, em 9 de fevereiro de 1909, em Marco de Canaveses (Portugal), a Pequena Notável chegou ao Brasil com menos de um ano de idade e logo tornou-se brasileiríssima. O apelido “Carmen” ganhou dos parentes porque era morena como a sedutora personagem da ópera de Bizet. Sua família aportou no Rio de Janeiro, quando estimava-se que havia 200 mil portugueses e outros tantos milhares de descendentes de imigrantes numa população de 1 milhão de habitantes. Haja bigodes, bacalhaus, azeites e sotaques lusitanos, ó, gajo!

Dentre os bairros em que os Miranda da Cunha moraram, o que mais marcou a vida de Carmen possivelmente foi a Lapa, onde a menina viu crescer e efervescer a boemia, a malandragem, a arte e otras cositas más. Lá, enquanto as moças de sua época tinham que ser recatadas, nossa heroína aprendeu gírias, palavrões e graduou-se na escola da sagacidade para contornar as mais diversas situações e conseguir o que queria.

Filha de um barbeiro e de uma dona de casa que lavava roupa para complementar a renda da família, logo, a menina inquieta, assim como as três irmãs e o irmão, teve que largar os estudos, ao concluir o ginásio, para ajudar os pais.

Trabalhou em lojas de chapéus, um item obrigatório para as mulheres da época. Esbanjando criatividade, criava modelos e era sempre a melhor vendedora onde quer que trabalhasse. 

Assediada sexualmente pelo chefe, Carmen decidiu abandonar o emprego e ajudar a mãe na pensão que Dona Maria havia aberto. Sempre de alto-astral e cantando, entregava aos fregueses as marmitas preparadas pela matriarca. Em Casa Grande & Senzala, o sociólogo Gilberto Freyre registra que o cantarolado ao trabalhar fazia parte do cotidiano dos escravizados e complementa: “Foi ainda o negro quem animou a vida doméstica do brasileiro de sua maior alegria. (…) A risada do negro é que quebrou toda essa ‘apagada e vil tristeza’ em que se foi abafando a vida nas casas-grandes. Ele que deu alegria aos São-Joões de engenho/ que animou os bumbas-meu-boi, os cavalos-marinhos, os carnavais, as festas de Reis”. 

Enquanto Carmen entregava as marmitas, conheceu o jornalista baiano e boêmio Aníbal Duarte, que viu nela potencial artístico e indicou seu nome ao compositor baiano Josué de Barros. Este percebeu que Carmen era afinada, possuía fortíssima presença cênica e demonstrava segurança incomum para uma novata. Logo, os convites começaram a surgir e o encadeamento dessa rede de contatos acabou conduzindo a artista a gravar discos, numa indústria fonográfica que ainda engatinhava no Brasil. Em 1929, ela fez sua primeira gravação, o samba Não vá Sim’bora. 

Naquele ano, mais jovens brancos da classe baixa e média carioca passaram a se interessar pela vida cultural da cidade e pelo samba (que sofria preconceito por ser música feita por negros). Dentre eles, nomes como Almirante, Braguinha e Noel Rosa, que, juntos, formaram o Bando de Tangarás. Cronista da cidade, Noel usou o humor como forma de explorar sua genialidade em clássicos como Gago apaixonado; Conversa de botequim; e Com que Roupa?, seu primeiro sucesso. O poeta da Vila modernizou a música popular brasileira ao utilizar rimas originais, gírias da época, expressões e ditos populares e também de duplo sentido.

Contratada pela RCA Victor, Carmen Miranda também gravaria canções que eram quase crônicas, como E o mundo não se acabou. A personagem retratada na letra, ao ouvir dizer que o mundo ia se acabar, passou a aproveitar a vida de forma incomum para o conservadorismo da época: “Beijando a boca de quem não devia, pegando na mão de quem não conhecia e dançando um samba em trajes de maiô”. A música é uma das 25 de Assis Valente que a artista gravou. Dentre sucessos de outros compositores, estão as cômicas Mamãe, eu quero!; Tico-tico no fubá; e A mulhé quando não qué.

Se no DNA de seu país de origem trazia a melancolia do fado, que parecia exprimir a saudade daqueles que partiram para o além-mar e nunca mais voltaram, Carmen apresentava, mesmo nos temas de desilusão, uma maneira de sair da tristeza, como em Taí (Pra você gostar de mim): “Essa história de gostar de alguém / já é mania que as pessoas têm”. Entre 1930 e 1939, foi recordista de gravações, vendas, cachês e salários, transformando-se no maior nome do rádio, do disco, do cinema e dos cassinos da época.

A artista se tornou das primeiras estrelas do cinema falado e a mulher mais bem paga de Hollywood e dos Estados Unidos, estrelando 14 filmes. Antes, no Brasil, participou de sete longas. No último deles, Banana da Terra, de 1939 (ano em que foi considerada “a garota que estava salvando a Broadway”), ela fez a estreia da imagem que a marcou e vinculou- -se para sempre ao nome Carmen Miranda. 

Inspirada nas baianas vendedoras de acarajé e de frutas, estilizou essa indumentária, transformando-a em um figurino exótico, com ombros, braços e barriga à mostra. As contas ligadas ao candomblé logo se tornaram colares, brincos e pulseiras douradas. Ou também numa mistura de bijuterias de diversas cores – a estética buscava no colorido e no brilho típicos do circo uma representação imagética da alegria. Com o visual esfuziante, encarnava a resposta à pergunta que Dorival Caymmi fez em O que é que a baiana tem? 

“Carmen Miranda era mestra do samba urbano carioca: leve, safado, sexy, como o estou-pouco-me-lixando da Cidade Maravilhosa. E sua personagem é uma criação tão inspirada quanto o Carlitos de Charles Chaplin. Aquelas frutas todas na cabeça, os olhares faiscantes, a pseudo paixão latina, o imenso senso de alegria e vitalidade que comunicava”, definiu Paulo Francis.

 

 

Seu je-ne-sais-quoi a transformou numa das primeiras it girls. O que é que a Carmen tinha? Um carisma como ninguém!

Na composição de sua personagem, sobre plataformas altíssimas e sobrancelhas arqueadas, elaborou os moldes estéticos que fariam a festa das drag queens no futuro. Muitos desses artefatos viraram sucessos de vendas nas lojas norte-americanas. As mulheres procuravam aproximar-se de seu estilo extravagante. Sem saber, Carmen, que adorava moda e ser fotografada com diferentes roupas, foi uma das primeiras influencers do século XX. Seu je-ne-sais-quoi a transformou numa das primeiras it girls. O que é que a Carmen tinha? Um carisma como ninguém!

Como possuía a experiência em criar e enfeitar chapéus femininos, foi uma tarefa à altura do seu talento e de sua autoconfiança elaborar um turbante que levasse diversas frutas à cabeça, sendo a banana, uma fruta que já carrega um teor humorístico, item indispensável e marcante. Essa imagem foi explorada pelos Estados Unidos, quando o país, em meio à luta contra a expansão do nazismo e com o objetivo de estabelecer relações comerciais, buscava promover uma política de boa vizinhança com a América Latina. Por isso, Carmen não apresentava, no cinema de Hollywood, uma nacionalidade específica.

Os filmes com a artista eram muito populares nas bilheterias hollywoodianas e enriqueciam os estúdios, mas não agradavam à América Latina. A imagem que Carmen vendia do Brasil e do continente era vista como folclórica e estereotipada. Numa visita ao Rio, a cantora se apresentou no Cassino da Urca, no dia 15 de julho de 1940. Empolgada com a nova língua que falava, chegou ao palco com um “good night” e cantando South american way. Isso foi o bastante para levar uma vaia que cravaria uma mágoa em seu coração.

Dois meses depois, fez outra performance, para uma plateia menos elitizada. Como costumava rir de si mesma e levar a sério o lema “fazer uma limonada dos limões”, ela apresentou a inédita Disseram que eu voltei americanizada. Com letra cheia de bom humor, feita especialmente como resposta à má-recepção que teve.

Mesmo no registro de sua última imagem, ela sai do palco do Jimmy Durante Show com graça e sorriso no rosto, saudando a plateia. Nas suas últimas horas, não abandonou o bom humor. De madrugada, partiu e se tornou, de vez, uma lenda.

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