Por Christian Schwartz
ERA UMA VEZ um certo nobre do século XVIII que se aventurou no exterior, cumprindo missão militar, e voltou com uma série de histórias escandalosamente divertidas para contar. Os feitos espantosos do Barão de Munchausen incluíam voar montado em balas de canhão, içar navios naufragados usando balões de ar e desatolar-se de um pântano puxando os próprios cabelos.
As histórias sobre o Barão foram coletadas e editadas pela primeira vez por um autor anônimo em 1781. Uma versão em inglês foi publicada em Londres em 1785 por Rudolf Erich Raspe, bibliotecário com pretensões a escritor que reescreveu e publicou dezessete dos “causos” que já circulavam, agora com o título de As surpreendentes aventuras do Barão de Munchausen.
Não se sabe quanto do material tinha como fonte o próprio Barão; sim, porque, conforme lembra a escritora Isabel Lopes Coelho, ao apresentar a edição brasileira d’As Aventuras (Ed. Sesi-SP), “a grande diferença entre o Barão de Munchausen e qualquer outro personagem literário é o fato de que ele existiu de verdade. Militar alemão, Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen (1720-97) participou das campanhas russas contra os turcos e, ao retornar, divertia seus pares com relatos absurdos de episódios que ‘teriam acontecido’ durante a viagem”.
O Barão de Munchausen é um mentiroso inveterado, mas suas mentiras não fazem mal a ninguém. Elas servem para nos divertir como as mais incríveis narrativas de viagem de que se tem notícia
E olha que, quando se fala de personagens literários consagrados à época, no Reino Unido, a expectativa é sempre de que fiquem à altura da rica tradição cômica local – nobre linhagem que faz das pantomimas de Shakespeare ancestrais diretas das adoradas esquetes do grupo Monty Python. Para não falar de satiristas e personagens satíricos como Laurence Sterne (1667- 1745) e seu Tristam Shandy, e Jonathan Swift (1713-78), outro autor satírico de primeira hora e grandeza – bastaria lembrar suas Viagens de Gulliver.
Entre os herdeiros desses dois clássicos – e, antes deles, do maior dos personagens aventureiros e espalhafatosos, rebeldes à sua maneira: o Dom Quixote de La Mancha – figura com destaque o Barão de Munchausen.
Por causa do sobrenome, tende-se a pensar que essa lenda baseada no homem real (este, de fato, originário do então vasto império germânico) pertence à literatura alemã, mas tampouco é surpresa a descoberta de que tenha fincado mesmo raízes nas ilhas britânicas – berço da sátira, afinal. Por outro lado, sabe-se que a maioria das histórias é baseada em contos populares que estiveram em circulação por muitos séculos antes do nascimento de Munchausen.
Quase imediatamente após a primeira publicação em livro, os leitores – adultos e, mesmo não sendo o público inicial, cada vez mais, crianças – ficaram encantados com aquelas aventuras improváveis. Depois, no século XIX, os contos foram sendo incrementados por vários autores notáveis e não demorou a surgirem novas edições com episódios “inéditos”, que aumentaram em número até perfazerem a coletânea hoje reconhecida como definitiva, com 34 histórias. Traduzidas para muitos idiomas, ganharam projeção internacional. E uma figura tão colorida como a do Barão naturalmente apela à imaginação artística. Daí ele ter sido retratado em inúmeras obras de arte – de longa metragens a história em quadrinhos. Sua imagem visual definitiva, porém, é a das ilustrações de Gustave Doré (que serviu de inspiração à edição brasileira de 2018, ilustrada por Rafael Coutinho).
Escritas em uma época em que a ciência estava substituindo a religião, e os exploradores mapeavam o globo, As surpreendentes aventuras do Barão de Munchausen libertaram o “louco” por excelência em plena Era do Iluminismo.
Por fim, a crítica ao excessivo racionalismo que se impunha no século XVIII com as armas do fantástico e das situações de descompasso com a realidade – do humor rebelde que mora na “loucura”, por assim dizer – ecoou na produção contemporânea de humoristas britânicos sem papas na língua. Não à toa, a mais conhecida e, com razão, celebrada adaptação das peripécias de Munchausen é obra de um dos Python, Terry Gilliam, que ainda escalou o colega de trupe Eric Idle num dos papéis principais.
“O anti-herói que viaja duas vezes à lua, chamusca as sobrancelhas no Sol, percorre o mundo em navios, balões, sobre o dorso de um cavalo e ainda encontra tempo para lutar com Dom Quixote, seu maior rival literário” Isabel Lopes Coelho
No filme, o Barão está em missão para libertar uma cidade sitiada – mas desconfia que talvez o inimigo não sejam os invasores supostamente perfilados do lado de fora dos portões. Munchausen quer desmascarar poderosos como o sr. Jackson, que manipulam o povo da cidade, a fim de mantê-lo prisioneiro do medo. “E então, sr. Jackson”, provoca o Barão, “continua sendo um homem racional? Quantas pessoas morreram nessa sua guerrinha lógica?”, ao que o racionalista manipulador responde: “Existem regras de conduta a serem seguidas. Não podemos voar para a Lua. Não pode mos desafiar a morte. Precisamos encarar os fatos, e não [aceitar] as loucuras de quem, como você, não vive na realidade e, consequentemente, sempre acaba mal”.
Mas são as “loucuras” desse herói destemido e espalhafatoso – suas duas viagens à Lua, outra à África (onde, ironicamente, cargueiros abarrotados de brancos escravizados é que são despachados da costa por nativos ávidos por lucro) – que, no fim, salvam o dia.
O sr. Jackson, na adaptação pythoniana das aventuras, sabendo do perigo, tenta impedir – spoiler: não conseguirá! – que a cidade agora liderada pelo performático Munchausen se liberte: “Abram os portões!”, desafia o Barão. “O senhor está preso por espalhar histórias ridículas num momento de grande perigo, quando o inimigo está às portas! Prendam-no!”, reage o sr. Jackson, “Ordeno que prendam já aquele homem! Eu sou ou não sou o representante eleito do povo? Prendam-no!”.
O Barão resiste e comanda o verdadeiro desfile carnavalesco em que se transforma aquela rebelião: “Abram os portões!”.
Como diz Paul McDonald, autor de The Philosophy of Humour (Philosophy Insights), pequeno manual de escrita criativa que oferece uma introdução inteligente e didática ao tema do humor como rebeldia, é aí que “a comédia cria um espaço onde alternativas ao status quo podem pelo menos ser imaginadas e contempladas, e isso tem o potencial de influenciar o pensamento das pessoas e, em última análise, mudar as coisas”. De ser um antídoto para a dura realidade, em outras palavras.