Respeitável público

Por Benedito Costa Neto

 

De repente, o milagre da alegria se dá: a criança estende um pedaço de cenoura para a girafa. O animal, gigantesco para a mãozinha delicada, estende seu belo pescoço de uma pelagem única no reino animal para abocanhar a iguaria, mostrando a língua enorme, quase uma ponte. A criança ri de tremer nos braços da mãe.

Certamente, essa cena pode resumir a magia do circo: a fantasia, o inusitado, o belo, o encantatório, tudo isso num lugar só. Poucos lugares no planeta foram feitos para isso, para momentos de alegria, de felicidade, para risos e aplausos, território onde a pessoa pode ser ela mesma e não: o adulto vira criança; a criança, um anjo; os anjos, outros espectadores, que ficarão em silêncio nos momentos de maior tensão eles também. É ali que viscejam os “ós”, os “us”, as palmas de quem encontrou um tesouro raro, o sorriso tenso de quem torce para que a linda menina de corpete de lantejoulas atravesse o vazio numa corda, munida apenas de uma sombrinha que ela gira hipnoticamente.

Segundos depois, a girafa sai correndo com seu treinador, seguida por um hipopótamo anão, uma matilha de cachorrinhos malteses e uma lhama branca, sumindo atrás das cortinas. O sorriso da criança com seus dentinhos irregulares é a melhor definição de felicidade. Nessa redoma sagrada, a felicidade une todos, num momento bastante raro na vida das pessoas. Ela costura vidas. O circo é a entrada para um universo novo, tão longe e tão próximo.

A criança não sabe: logo, os circos com animais serão cada vez mais raros. Mas sempre haverá a magia. Atrás das cortinas estão a trapezista, o mágico, o palhaço, o faquir… e surge o mestre-de-cerimônias vestido com um redingote vermelho e galões dourados, meio rei-sol, meio pirata, maestro das belezas e sacerdote da graça, botas altas pretas e lustrosas como um espelho de obsidiana. Ele apresentará o primeiro número, já lembrando à plateia de que o grande espetáculo da Terra virá logo: quatro motos dentro de um globo, carregando tochas, arriscando a vida. Mas até lá haverá gente voando pelo céu de lona, palhaços que farão rir

e chorar, um homem se livrando de correntes grossas embaixo d’água, e um rapaz que será atirado de um canhão.

No Oriente e no Ocidente, entre tribos antigas e já extintas, em países ricos e países pobres, sempre houve algum espetáculo para fazer as pessoas rirem, saírem de seu lugar comum do dia a dia, esquecerem as labutas cotidianas

Enquanto a criança se maravilha com os shows de gente, bichos, areia e fogo, na mente dos historiadores está a longa trajetória do circo no mundo: no Oriente, e no Ocidente, entre tribos antigas e já extintas, em países ricos e países pobres, sempre houve algum espetáculo para fazer as pessoas rirem, saírem de seu lugar comum do dia a dia, esquecerem as labutas cotidianas. Na Ásia, desde a Antiguidade, malabaristas entretinham imperadores, equilibrando pratos e contorcendo o corpo ao limite do possível. No Egito, havia até um deus para representar esse humor e essa felicidade. Os romanos foram longe e criaram um lugar chamado, justamente, “circus maximus”, algo como “uma grande circunferência”. Ali, na areia, houve um pouco de tudo, incluindo espetáculos que a criança e seus pais, hoje, não gostariam de ver.

Mas foi dali e desses lugares todos, unindo Oriente e Ocidente, gentes das mais variadas etnias e línguas, que surgiu o circo como o entendemos hoje, desde esse circo que ainda utiliza(va) animais até os suntuosos espetáculos atuais, como os do Cirque du Soleil, apenas com pessoas.

A criança também não saberá, mas o circo tem vida própria, começo e fim, e estes circos vão mudando, fechando, terminando… dando ensejo a outros, outras versões, outras formas. Haverá espetáculos sob outras lonas, outros tetos e outros céus, e sempre gente em busca da magia e do frescor dos sorrisos. No Brasil, em particular, o circo tradicional (esse de lona, bichos, mulheres barbadas e homens fortes) chegou com os imigrantes do século XIX.

Claro, antes havia outras noções e práticas do riso, mas o circo tradicional é uma criação do século XIX. Aqui, o circo europeu se misturou àquelas outras formas tradicionais de riso e alegria, divertimento e homenagens (a santos, por exemplo), como o rodeio, o parque de diversões e as festas de igreja.

O historiador Elias Thomé Saliba pesquisa justamente isso: ele nos conta que exatamente do circo vieram personagens e situações que fazem parte não apenas da história do país, mas de nossa formação como povo. Vamos explicar isso: o humor que já havia aqui desde a chegada dos portugueses se misturou, então, ao riso quase melancólico dos iberos, ao vasto sorriso africano, ao humor dos imigrantes. De começo, conta o historiador, a elite do país não era muito interessada nesse tipo de humor, mas ele conseguia unir duas partes opostas: o gosto das elites e o gosto popular, a erudição das academias e as piadas chulas, e isso foi feito através da linguagem. Afinal, poucos povos no mundo são conhecidos pela irreverência como o brasileiro.

A criança, no colo dos pais, repete sem saber uma cena de muitas décadas. Milhões de brasileiros desde o século XIX vão e foram a circos para esses momentos de magia: ver os corpos bailando no ar como pombas ou anjos, o homem magro entrar numa caixinha pequena, a mulher ser serrada ao meio por um homem de capa… e, como não poderia deixar de ser, rir e se emocionar com os palhaços. Só os palhaços dariam uma série de livros, pois o Brasil foi pródigo em personagens circenses famosas, que escondiam o rosto atrás de uma grossa maquiagem, conseguindo transformar uma simples flor de plástico numa história humana e profunda, meio as histórias de todos nós, feitas de saudosismo, algumas lágrimas, nuvens de talco e, lógico, muitos e vastos sorrisos. O sorriso, já sabiam os antigos, lava a alma, purifica, limpa tudo, deixa o ar mais leve, aproxima as pessoas.

Ali, naquele momento de encanto, a família reunida nem saberá que as famosas personagens circenses europeias que ela vê, coloridas, em roupagens de reis e rainhas – baratas, mas mágicas –, vieram do teatro clássico greco-romano e depois dos espetáculos de rua – e ganharam uma tradução à brasileira. E, de repente, parece tudo uma coisa só: a festa religiosa; o carnaval; o teatro de rua; o teatro veudeville; as famosas comédias do cinema brasileiro; os programas populares de televisão… E com razão: é difícil até para os estudiosos puxar o fio da meada desse novelo complicado de desfazer. Onde começa e onde termina o quê!

Essas personagens do circo nos servem de metáfora, uma linda metáfora, digamos, para a vida: a menina que anda numa corda bamba, munida apenas de sombrinha, sem redes, o faquir que se deita numa cama de pregos e engole lâminas cortantes, o prestidigitador que transforma bengalas em ramos de flores, o casal que voa pelo céu de lona pintado de estrelas, todos eles são um pouco de nós. Ali estão o perigo e a salvação, o medo e o conforto da segurança, as asperezas e a suavidade do veludo.

Os egípcios antigos, além de um deus para o riso, tinham uma deusa chamada Nut, que era a abóboda celeste. Ela nos protege, de dia e de noite. Assim é o circo: uma deidade protetora: a criança lá do começo, que alimentou, feliz, uma girafa, é um pouco de todo mundo, debaixo desse céu mágico. Ela olha as estrelas pintadas na lona, como faziam os antigos, dois, três mil anos atrás, e abraça a mãe, maravilhada, agradecendo cada segundo.

A gente carrega, sem saber, o circo conosco e somos um pouco dele. Somos lona e areia, a lantejoula vermelha, a pomba que sai da cartola, o motoqueiro no interior do globo, e o palhaço, a imagem mais perfeita desse mundo de ilusão… Ilusão, nada! É a mais pura realidade!

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